Cobrança ou Recuperação de Créditos? A Importância da Linguagem na Gestão do Crédito

Vivemos num tempo em que a linguagem deixou de ser apenas um acessório da realidade: ela molda perceções, define estratégias e influencia comportamentos. Na gestão de crédito, esta verdade assume contornos particularmente relevantes. Os termos que escolhemos (“cobrança”, “recuperação”, “credor”, “devedor”, “cliente”, “cobrador” ou “gestor”) não são neutros. Transportam consigo uma visão do problema e uma proposta implícita de solução. E por isso, merecem ser repensados.

A Terminologia

À primeira vista, a diferença entre entre a utilização dos termos “cobrança de dívidas” ou “recuperação de crédito” pode parecer apenas semântica. Mas não é. O termo “cobrança”, embora consagrado na legislação, carrega conotações agressivas, associadas a práticas coercivas ou litigiosas. Já “recuperação de crédito” sugere uma abordagem mais ampla, estratégica e, sobretudo, relacional.

Esta diferença não é irrelevante. Num contexto em que a continuidade da relação comercial é, muitas vezes, o objetivo, a linguagem importa. Não se trata apenas de exigir o cumprimento de uma obrigação, mas de o fazer preservando a confiança, a dignidade e a viabilidade da relação contratual.

Credores e Devedores …. ou Fornecedores e Clientes?

A linguagem jurídica cumpre uma função essencial: define direitos e deveres com rigor e autoridade. No entanto, quando aplicada de forma acrítica às relações comerciais, pode tornar-se contraproducente. Dizer que “o credor exige que o devedor cumpra” é tecnicamente correto, mas introduz uma carga adversarial que pode dificultar a solução do problema.

Na prática, o “credor” é frequentemente um fornecedor que deseja continuar a fornecer, e o “devedor” é um cliente que, por alguma razão, está a cumprir com atraso. Reduzir a relação a um conflito jurídico ignora a complexidade e o potencial da continuidade comercial. A linguagem deve refletir essa ambição.

Gestor de Cobranças ou Gestor de Crédito?

As funções ligadas à recuperação de crédito são, muitas vezes, desvalorizadas pelo próprio vocabulário. Termos como “cobrador” ou “assistente de cobranças” não fazem justiça à complexidade da função nem às competências exigidas. O profissional que gere o crédito tem de analisar riscos, negociar planos, tomar decisões sobre litígios, manter relações com clientes e proteger os interesses da empresa. É, inequivocamente, um gestor.

A designação gestor de crédito deve ser assumida como referência, dignificando a função e reconhecendo a sua importância estratégica. Numa economia em que o crédito é um instrumento essencial, quem o gere é parte central da sustentabilidade do negócio.

A Linguagem como Estratégia

Mudar a terminologia não é um exercício de cosmética. É um passo para mudar a cultura. Uma linguagem agressiva e juridicista induz práticas igualmente adversariais. Uma linguagem relacional e estratégica favorece soluções construtivas, respeitosas e duradouras. A proposta passa, pois por falar em recuperação de crédito, não em cobrança de dívidas; reconhecer o cliente mesmo no incumprimento, sem o reduzir a “devedor” e valorizar quem atua no terreno como gestor, não como executor.

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Em suma, a linguagem que usamos para falar de crédito molda a forma como o gerimos. Termos desatualizados ou excessivamente punitivos não apenas distorcem a realidade, como dificultam a resolução dos problemas. Se quisermos uma gestão de crédito mais eficaz, mais humana e mais estratégica, comecemos por ajustar a forma como a descrevemos. Porque, na verdade, as palavras contam e muito.

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